Maryse Condé, a grande dama da literatura francófona

Por Vera Dantas
4 de abril de 2024
Maryse Condé, a mais importante voz das letras caribenhas, cujo Evangelho do Novo Mundo foi publicado pela Livros do Brasil em fevereiro passado, partiu esta semana para o firmamento dos escritores aos 90 anos, deixando uma obra vasta e notável. Romancista de sucesso, a prolífica autora publicou 70 livros – romances, peças de teatro, ensaios e obras para crianças. Escritora, professora e jornalista, Condé teve uma vida cheia, marcada pelas suas numerosas viagens da Europa à África Ocidental e aos Estados Unidos. A escravatura, o colonialismo, o racismo, a identidade e a maternidade foram temas constantes na sua escrita. Conheceu os líderes dos movimentos independentistas seus coetânos e foi a primeira presidente do Comité Nacional para a Memória e História da Escravatura, em França. Revisite connosco a história da “grande dama” da literatura francófona.
 Maryse Condé | MEDEF | © CC BY-SA 2.0 DEED
Maryse Condé | MEDEF | © CC BY-SA 2.0 DEED
UMA VIDA ENTRE CONTINENTES
Maryse Boucolon nasceu a 11 de fevereiro de 1934, em Pointe-à-Pitre, uma cidade de Guadalupe, departamento ultramarino de França. Era a mais nova de oito filhos e cresceu no seio do que ela apelidou de uma «burguesia negra embrionária». A sua mãe dirigia uma escola para raparigas e o seu pai, Auguste Boucolon, foi professor, antes de fundar um banco.
Primeiro, Maryse apaixonou-se pela literatura – aos 12 anos, escreveu uma peça de um ato para oferecer à mãe no dia do seu aniversário. Depois, de forma mais gradual, ineressou-se pela política. Tendo passado a sua juventude em Guadalupe, ainda muito colonial, deixou a ilha em busca de respostas sobre a sua identidade e as suas origens. O seu passaporte francês não a impediria de se tornar uma forte ativista pela independência do seu arquipélago natal.
Em Paris, estudou na Sorbonne e integrou-se nos círculos intelectuais negros desta cidade, onde se viria a casar com o seu primeiro marido, o ator guinnense Mamadou Condé. Apenas um ano depois, separou-se e mudou-se para África para ensinar. Viveu durante longos períodos na Guiné, no Gana e no Senegal, numa região que vibrava com os ventos da independência e da descolonização, e que atraía pensadores e activistas de toda a diáspora negra. Esta vivência deu a Condé a inspiração para escrever, primeiro como dramaturga e, depois, como romancista. Paralelamente, teve uma carreira académica de sucesso. Durante muitos anos, dividiu o seu tempo entre a cidade de Nova Iorque e a sua terra natal, Guadalupe. Foi professora emérita de Francês na Universidade de Columbia, tendo também lecionado na UCLA, na Sorbonne (onde se doutorou em Literatura Comparada) e em Berkeley.
 Evangelho do Novo Mundo
 
UMA OBRA MARCADA PELO DESEJO DE MUDAR O MUNDO
O primeiro romance de Condé, Hérémakhonon (que significa "À Espera da Felicidade" na língua malinke da África Ocidental), de 1976, surge numa altura crucial, em que a literatura francesa, centrada nas obras clássicas de escritores franceses, começa a dar lugar à multifacetada literatura francófona, proveniente de todas as partes do mundo de língua francesa. Grande parte da sua obra é histórica. Ségou (1984) foi o livro que projetou a escritora para a fama. Conta a história de um conselheiro real no Império Bambara da África Ocidental, que floresceu nos séculos XVIII e XIX, mas que entrou em colapso sob a pressão das forças europeias e islâmicas.
Condé é também exímia a recontar grandes narrativas. Baseando-se em elementos das obras A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, e The Crucible, de Arthur Miller, contou a história de uma mulher escravizada apanhada nos julgamentos das bruxas de Salém em Tituba, Black Witch of Salem, obra vencedora do Grand Prix Littéraire de la Femme.
No seu último livro, Evangelho do Novo Mundo, Condé escreve uma espécie de testamento, no qual se interroga, com pesar, sobre a forma como o mundo gira. Trata-se de uma reinterpretação da Bíblia, transposta para Guadalupe, escrita em homenagem a José Saramago.
«Há muito tempo, li Caim,, a releitura da Bíblia feita por José Saramago. Queria fazer o que ele fez, mas não me atrevi. Depois dele, J. M. Coetzee e Amélie Nothomb escreveram ficção que reescrevia a vida de Jesus. Senti-me então libertada. Também eu tinha o direito, era livre de exprimir os meus pensamentos», confessa a autora. O herói deste derradeiro livro é Pascal, um recém-nascido mestiço que um casal piedoso encontra deitado numa cama de palha no seu jardim, num domingo de Páscoa. A criança descobre que tem poderes e, magoada com as injustiças do mundo, propõe-se mudá-lo. Com uma abordagem liberta e otimista, este romance é uma magnífica porta de entrada para o mundo da escritora.
O RECONHECIMENTO DE UMA VOZ ÚNICA
Condé construiu uma obra poderosa e popular que acabaria por ganhar mais reconhecimento em países como os Estados Unidos do que em França. O seu nome foi várias vezes mencionado para o Prémio Nobel da Literatura. Morreu sem o ganhar, mas afirmava que distinções e bens materiais não eram algo a que atribuísse importância na sua vida. Mas os seus leitores e o mundo literário quiseram condecorá-la pelo seu legado e, em 2018, um júri popular de 32.000 pessoas de todo o mundo votou para lhe atribuir o Prémio Nobel alternativo, que lhe foi atribuído numa cerimónia em Estocolomo. Maryse, ficou-lhes grata: «Os franceses nunca quiseram ouvir a voz de Guadalupe. Estou contente por esta voz única estar finalmente a ser reconhecida.»
Mas, no final, também os franceses reconheceram a sua obra. Dois anos depois, em 2020, Emmanuel Macron condecorou a escritora com a Ordem de Mérito da República Francesa. No dia em que a escritora morreu, o presidente francês homenageou-a com estas palavras: «Gigante das letras, Maryse Condé soube pintar as dores e as esperanças, de Guadalupe a África, das Caraíbas à Provença. Numa linguagem de luta e esplendor que é única e universal. Livre.» A sua força, essa, nunca se extinguiu: «Moi je reste fidèle à ce désir de changer le monde.»

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