«O desejo é maior do que a realidade» - Entrevista a Gioconda Belli

Por Vera Dantas
16 de abril de 2024
Para Gioconda Belli, o desejo é maior do que a realidade. Foi por acreditar que é possível fazer a mudança que esta escritora e poeta nicaraguense, nascida em Manágua em 9 de dezembro de 1948, lutou com a Frente Sandinista de Libertação Nacional, movimento guerrilheiro que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza em 1979. Na altura, teve de se refugiar no México e na Costa Rica.

Agora, 25 anos depois, vive novamente exilada, mas em Madrid, situação para a qual não se sentia preparada e que não imaginava possível. Mas aconteceu: no ano passado, Gioconda Belli foi condenada por «traição à pátria» pela «propagação de notícias falsas», os seus bens foram confiscados e a sua nacionalidade foi-lhe retirada pela regime ditatorial de Daniel Ortega e Rosario Murillo, juntamente com mais de 90 personalidades nicaraguenses. Continua otimista, mas sabe que não será possível uma mudança em breve.
Gioconda Belli
Gioconda Belli, Foto © Flickr CC BY-NC-ND 2.0 DEED
Tanto nos seus romances como na sua poesia, Gioconda combina a sua experiência pessoal com experiências coletivas. Consegue escrever poemas de amor que são também revolucionários, sendo a sensualidade uma marca transversal à sua obra. A sua poesia é muito autobiográfica, porque fala de como se descobriu como mulher, em primeiro lugar, a partir de uma posição de desafio, por não aceitar o papel que lhe estava predeterminado. Escrever dá-lhe um gozo bestial e a poesia como que a «ataca» de rompante. E sente-se livre. Não precisa de muito, mas precisa de ser feliz, e consegue-o.


ENTREVISTA


Autora, poeta e ativista política. É mais uma destas coisas ou não poderia ser uma sem as outras?
Não poderia ser uma sem as outras porque a minha vida política foi de certa forma o resultado de ser nicaraguense. Na Nicarágua era-se perseguido pela situação política e isso foi o que realmente me fez ver a realidade de uma outra perspetiva o que, por sua vez, me levou a escrever poesia, não só sobre a realidade política, mas também sobre a realidade enquanto mulher. Isso foi muito importante para mim.

Nos seus romances explora os temas do amor, da revolução e da justiça social. Como consegue equilibrar esses elementos nas suas narrativas?
Penso que parte disso é a minha própria experiência. A Mulher Habitada, que foi o meu primeiro romance e que teve muito sucesso, tem muito da minha própria experiência. Vivi muitas coisas e isso ajuda-me a criar histórias e a introduzir nelas a realidade política. Todos nós vivemos numa realidade política e especialmente na América Latina, onde não se pode fugir dela – não é como na Europa. Lá, as coisas estão a acontecer, temos guerras e insurreições. Esta experiência faz parte de tudo o que vivi e de tudo o que é a minha literatura. Há duas coisas que decidiram a minha vida: o país onde nasci e o sexo com que vim ao mundo. Esse país onde eu nasci foi o primeiro amor da minha vida porque é um país lindo que, além de ser muito vulcânico, com terramotos e furacões, é tem uma natureza muito tropical e indomável, muito desafiante. Eu sentia tudo isso, como se o meu corpo e a Natureza estivessem muito ligados.
«Há duas coisas que decidiram a minha vida: o país onde nasci e o sexo com que vim ao mundo.»
Transpõe para a sua poesia as suas experiências e emoções pessoais. É-lhe mais natural exprimir-se dessa forma como poeta ou como romancista?
A minha poesia é muito autobiográfica porque fala de como me descobri como mulher, em primeiro lugar, a partir de uma posição de desafio, de certa forma, porque não aceitava o papel que estava predeterminado para uma pessoa da minha classe e do meu sexo. Na poesia, expresso-me de uma forma mais espontânea, porque não a planeio. Ela como que me “ataca”, quando vou escrever um poema. Nos romances, ponho mais da experiência colectiva.
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De que forma usa o realismo mágico como ferramenta para abordar questões sociais e políticas?
É mais fácil fazê-lo dessa forma, menos dolorosa. Não diria que “uso” o realismo mágico, porque o realismo mágico é toda uma forma de dizer, de estruturar um estilo. Utilizei certos artifícios mágicos, como a árvore da vida, de A Mulher Habitada, em que há uma mulher que morre e se torna a sábia de uma árvore, mas não passa disso. Ou seja, o meu realismo mágico não é sobre pessoas com cabelo verde ou que flutuam no ar. Vivemos um realismo que é terrível, porque não é de uma magia branca. Em muitos casos na Nicarágua, por exemplo, neste momento, a realidade é terrível, porque é perverso e sem precedentes na nossa História.


A Natureza é também um elemento muito presente no seu trabalho. De que forma esta a inspira a transmitir, com imagens naturais, mensagens e emoções?
Eu acredito que somos todos parte da Natureza e que separarmo-nos dela foi o que criou uma relação quase inimiga com ela. Somos todos seres naturais, somos orgânicos, fazemos parte da Gaia. Reivindico isso na minha poesia, como no caso em que, por exemplo, digo que fui uma árvore numa vida anterior. Escrevi aquele romance em que a personagem principal se torna uma árvore porque pude realmente sentir o que era ser uma árvore, mas acho que tem a ver com a ligação e com o saber como as plantas funcionam e também com o meu interesse pela vida terrestre.

Sei que tinha um jardim na sua casa na Nicarágua, que era muito especial para si, da qual o regime de Ortega se apropriou. O seu país retirou-lhe a nacionalidade, a Espanha condeu-lha há um mês. Que impacto estas duas atitudes tiveram na sua vida? Sente mais esperança do que tristeza ou revolta?
Quero muito ter esperança, porque sou uma pessoa otimista e a minha vida tem sido conduzida pelo otimismo. Se não tivesse acreditado no que era possível, não teria feito tudo o que fiz, mas agora estou um pouco triste porque vejo que vai demorar muito tempo até que as coisas mudem na Nicarágua. A nacionalidade é uma coisa artificial, não é um tirano que diz que já não sou nicaraguense. Rasguei o meu passaporte na televisão porque ele não é a minha nacionalidade. Vou continuar a ser nicaraguense, mas agora tenho a vantagem de adotar outras pátrias que me adotam a mim. Por isso, também sou espanhola e também já era italiana, por parte da minha família.

Não espera que o seu país consiga derrubar a ditadura num futuro próximo?
Bem, a surpresa faz parte da vida. Mas é muito claro que, neste momento, não, porque há tanta repressão que a organização que é necessária para derrubar uma ditadura não é possível.
 
«Não é um tirano que diz que já não sou nicaraguense. Vou continuar a sê-lo, mas agora tenho a vantagem de adotar outras pátrias, que me adotam a mim.»
Apesar do exílio, a sua escrita chega a muitos leitores em todo o mundo. Sente que ajuda aqueles que vivem em situações difíceis a encontrarem força para resistir?
Sim, sinto que a literatura é uma fonte de vida, de esperança e de comunidade. Sentimo-nos menos sós quando sabemos que outras pessoas estão a passar por situações [semelhantes às nossas], quando aprendemos como elas estão a lidar com a sua dor e com os seus problemas. Por isso, acredito que há uma espécie de rede que nos une a todos.

Qual foi a coisa mais bonita que os leitores já lhe disseram?
Que a minha poesia mudou as suas vidas. Acho sempre tremendo quando as pessoas me dizem isso, e já mo disseram muitas vezes, em todo o mundo.

Como se sentiu quando recebeu o Prémio Reina Sofía de Poesia Iberoamericana, sobretudo neste momento da sua vida?
Foi como um enorme abraço de vida, depois de tudo o que me estava a acontecer, do facto de ter tido de deixar o meu país e de me instalar num novo lugar. Apercebemo-nos de que não somos uma nação, de todo. Senti que estava a transcender a minha nacionalidade, que me estava a transcender a mim própria, e que isso é um dom da poesia também.

Hoje, sente-se livre, apesar de tudo?
A poesia é como uma coisa mágica que nos acontece, quando nos sentimos completamente livres. Não é verdade que só nos sentiríamos livres se pudéssemos estar no nosso país. Eu sinto-me livre, sou livre mesmo que não tenha nada.
 
«Receber o Prémio Reina Sofía foi como um abraço da vida. Senti que estava a transcender a minha nacionalidade, e a mim própria, e isso é também um dom da poesia.»
O que é mais importante para si?
É ter a possibilidade de me manter com um centro, para poder dar. Tento ter a tranquilidade, a sensação de paz, e trato de ser feliz. Acredito que a felicidade é um estado de espírito e que quando se é feliz se consegue fazer os outros felizes. Não se pode dar o que não se tem. Para me sentir forte, para enfrentar os problemas, para cuidar dos meus filhos, preciso de ser feliz, de me sentir bem. Então tenho a sorte de me sentir bem, muito frequentemente.

O que lhe falta fazer?
Muitas coisas. Preciso de escrever mais, ir ao Egipto, ir à Grécia, conhecer. Preciso de ver os meus filhos crescerem. Mas não preciso de muita coisa. Precisava de ver a Nicarágua livre, mas ainda não tenho isso. Não quero empenhar a minha felicidade nisso, porque não sei se a vou ver. O desejo é maior do que a realidade.

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