Um sonho em verso de Adélia Prado, Prémio Camões 2024

Por Vera Dantas
27 de junho de 2024
Adélia Prado, a autora brasileira nascida em Divinópolis em 1925, é a vencedora do Prémio Camões de 2024, o mais importante atribuído a a autores lusófonos pelo conjunto da obra. Na edição de ontem do jornal O Globo pode ler-se que os seus versos «misturam religião, desejo e morte, falando sobre as angústias das mulheres da família que gostam de sexo e temem a Deus» e que Adélia Prado é considerada por muitos a maior poetisa viva do Brasil. Esta nova distinção surge apenas uma semana após a autora ter sido galardoada com o importante Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.
Com 88 anos, entre poesia, ficção e antologias, Adélia já publicou mais de 20 livros. Por cá, tem três livros editados pela extinta Cotovia: Bagagem (2002), Com Licença Poética (2003) e Solte os Cachorros (2003). Em 2016, a Assírio & Alvim publicou a antologia Tudo Que Existe Louvará
Tudo começou há mais de meio século. Na introdução de Com Licença Poética, uma antologia da poetisa, ficamos a saber que «Em 1973, uma mulher de Divinópolis, no interior mineiro, enviou um conjunto de poemas inéditos» a um poeta e crítico, «que por sua vez os passou a Carlos Drummond de Andrade.» Dois anos depois, numa crónica, Drummond diria dela: «Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia cmo faz bom tempo», e recomendaria a um editor que publicasse um livro com base nos originais inéditos. Em 1976, aos 40 anos, Adélia Prado via assim o seu primeiro livro publicado. Chamava-se Bagagem e é dele o poema que abaixo reproduzimos:



UM SONHO


Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer,
por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava pra uma festa onde eu ia falar.
O meu cabelo limpo refletia vermelhos,
o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,
o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam
do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se.
Todo o movimento era de espera e aguardos, sendo
que depois de vestida, vesti por cima um casaco
e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma
eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela,
que me encantou pelo seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem as reverberações, de um azul
sem o “z”, que o “z” nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a ideia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei.
 Tudo Que Existe Louvará _Adélia Prado_wookacontece
Um poema de Bagagem, de Adélia Prado

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